Transfronteiras um concerto-instalação
A OrchestrUtopica dedica a programação da temporada 2009-10 à ideia de interacção. Sem dúvida uma das grandes tendências das artes e da música contemporâneas, a interacção é potenciada pela emergência das plataformas digitais que permitem cruzamentos e ligações mais puras ou mais impuras, experiências de contaminação, de explosão de limites e de fronteiras entre artes, revelação de correspondências, de interpenetrações de linguagens e de artes. São fronteiras que se transpõem reciprocamente, desfazendo para sempre as separações mais ou menos rígidas entre as artes e entre elas e o público. Destruindo fronteiras, abrindo novos espaços, propõe-se também, afinal, um outro protocolo de entendimento entre artes e linguagens que se ancora na experiência estética partilhada e interagida. Experiências que correspondem, afinal, a interrogações sobre o futuro. TRANSFRONTEIRAS é uma proposta de concerto visual em que a OrchestrUtopica continua a questionar as limitações do formato dominante da produção e da recepção musical (o concerto) e a explorar novas possibilidades de inter-relação entre público e artistas, e entre diferentes artes. A ideia não é nova, porém.
Mas, para além de epifenómenos historicamente conhecidos (Wagner, Cocteau, etc.) e do curso autónomo que o género ópera tem seguido, há que reconhecer que as artes visuais, neste campo, têm revelado uma maior agilidade, acedendo ao plano da opera (obra) através da instalação em consequência da questionação dos seus limites internos. Este concerto propõe esse encontro: entre a obra e mundo imagético do artista Luís Campos e a música contemporânea – num acontecimento único. E não é sem razão que aqui invocamos a ideia de ópera – o grande género e o conceito – pois ela tem sido o modelo por excelência de uma arte de interacções. É também no olhar “dramático” de Luís Campos que encontramos um ponto de contacto essencial inesperadamente musical. Para além da questão tecnológica, o que está verdadeiramente em discussão é o problema da interacção. No fundo, recuando a Wagner (para não irmos mais longe), é preciso reconhecer que um princípio começava a ruir: o do momento musical. A proposta wagneriana, no final do século XIX, era a de um teatro concebido como um espaço de imersão, ou seja, o local onde a obra era dada a público obrigava pela sua condição física à imersão do público na experiência do acontecimento. Esse momento modernamente fundador tem sido por vezes sobreavaliado em relação aos problemas concretos da ópera enquanto género, ou seja, naquilo em que aquele modelo subvertia nas formas tradicionais de recepção da ópera. Porém, o seu interesse renova-se quando reconhecemos nos seus pressupostos elementos que nos permitem compreender e agir sobre o contemporâneo. O desafio de programar um concerto audiovisual, ou seja, de programar peças visuais e peças musicais em interrelação, só encontra correspondente na própria tarefa de compor e criar um obra nova. Este concerto é concebido, ele mesmo, como uma obra una. É portanto, composto. Sendo as obras dentro dele parte de um programa dado a ver e a escutar em simultâneo, de modo a provocar uma forma de imersão que rejeita, apesar de tudo, a irracionalidade da comunhão wagneriana e propõe antes um projecto de experiência racional de relação com a simultaneidade. Não se trata, portanto, neste concerto, de uma nova forma de contemplar a obra visual de Luís Campos (com música), nem de uma nova forma de ouvir a música dos diferentes compositores (com imagem). Trata-se antes de viver a experiência – simultaneamente racional e emocional – de fazer parte de uma realidade proposta, diferente da realidade. Na verdade, a questionação da forma concerto (na sala de concertos) corresponde à questionação da forma exposição (de dar a ver) – na galeria e no museu (duas instituições problemáticas). A proposta que fazemos é a de uma plataforma artística composta num plano antecipador de futuros: o plano da opera (obra) que se constitui numa relação diferente com o público, questionando distâncias e promovendo experiências.
Imersão
Para além da música (dos sons), neste concerto predominam imagens. São imagens que possuem um programa próprio. Mas a imagem define-se a si mesma por relação com outra coisa fora dela, outra imagem ou fantasia que pode ser usada para reafirmar o poder da fabricação de imagens. No plano da imaterialidade da imagem (vídeo) na sua relação com a música (uma arte “cega” e invisível) cria-se um espaço fecundo ancorado na experiência estética (da sensibilidade) e humana de imersão num dispositivo concentrado. A integração de todos os elementos num momento de imersão cria a excepcionalidade do acontecimento. Se por um lado há as imagens e por outro a música, no fundo o acontecimento consiste na experiência de participar na produção do acontecimento. A simulação de uma utopia num espaço de recreação heterotópica do real (Foucault) um “contra-lugar” (não um u-topos, mas um hetero-topos) consiste numa espécie de utopia activada excepcionalmente num espaço isolado, na qual o real que existe na cultura é representado em diferentes formas em simultâneo, é discutido e invertido. Lugares assim estão fora de todos os lugares. Trata-se pois de uma disfuncionalidade paradoxal. Não só do espaço do concerto (e da ideia de concerto – que tem pouco mais de 200 anos), mas do espaço da realidade. A excepcionalidade deste concerto consiste simplesmente no facto de ele se propor como um recorte na realidade, uma experiência única num hetero-topos, num não espaço de formas sonoras e visuais. Nesta heterotopia de acontecimentos geram-se por si mesmos novos tipos de interacção com o público e propõem-se assim diferentes formas de interpretação. Aqui experiência é mediada através do corpo: o grau de estímulo que faz mover as nossas faculdades sensoriais está directamente ligado ao impacto que essa experiência têm em nós. Uma obra experimentada num ambiente de imersão pode ser entendida como um misto de prazer sensorial e narcísico que se propõe aos participantes. Nas palavras de Frederic Jameson, de facto, “estamos submersos até ao ponto em que os nossos corpos pós-modernos estão desligados das coordenadas espaciais e somos praticamente incapazes de distanciação”. Este “modo de imersão”, é uma condição-chave para a contemplação contemporânea (para o exercício da visão e da audição). Contra a perspectiva geométrica que ordena e estabiliza o espaço e as percepções do real, o contemporâneo deu lugar à relatividade de um espaço acidentado, descontínuo e heterogéneo e encontrou no “modo de imersão” uma forma de regresso ao Eu interior mediada pelo corpo e pela experiência estética.